Tem que ter
Já dizia o poeta que uma mulher não pode ser lá só fruto de uma sexualidade etiquetada por nós e pelo resto da humanidade. Ah, não. Ele dizia que uma mulher tem que ter qualquer coisa além de beleza, alguma coisa de triste. Que é pra gente ter certeza de que vocês são de verdade. Que é pra gente sentir aquele gostinho salgado das lágrimas se misturando ao sabor do batom de vocês quando a gente for lambuzar a boca num pedido de desculpas. Que é pra gente sentir bem a diferença de um rosto macio passando por uma barba que denuncia uma certa inaptidão para a doçura.
Uma mulher tem que ter algo de fera. Algo a ver com caninos expostos e feições tranquilas que ameacem. Tem que ter essa fantasia perigosa entre uma mordida e outra. Que é pra gente sentir as presas – e se sentir preso pelos olhos. Que é pra gente suar junto e fugir junto quando a coisa ficar feia pra gente. Que é pra gente entender que o descontrole feminino causa arrepios, mas a malícia da tranquilidade é mais prejudicial ainda. Que é pra gente temer perdê-las de luz apagada. Então uma mulher tem que ter algo de exibicionista a olho nu.
Uma mulher tem que saber bem sobre caminhos. Ser boa de estrada pra deixar a gente se perder nas curvas – ou na falta delas – e se divertir com a nossa falta de perspicácia a la Teseu. Tem que deixar um pouco seu lado Ariadne e se divertir como faria alguma Afrodite ou Lolita. Tem que ter aquele quê de infernal na forma com que nos despreza e nos aceita de volta. Saborear-se de improvisos e nos deixar sem fala a cada novo script. Mas sem tragédia. Já basta a vocês que sejam tristes. Então recomendo que toda mulher tenha um pouco de comédia romântica. Que é pra garantir um final mais ou menos feliz e um (des)enrolar de história bem divertido. Que é pra companhia ser amigável e pro tempo voar quando a gente estiver com vocês. Um pouco de teatro romano só pra rir quando Nero incendiar Roma. Ou pra botar fogo em Roma e destruir tudo vocês mesmas. Uma mulher deveria ter essa noção de que o poder as pertence e nós… Ah, nós somos apenas humanos indefesos perto delas.
Uma mulher tem que ter um quê de mãe. Que é pra avisar quando estamos errados e pra rir quando a gente ultrapassar o conselho e der de cara com alguma chuva de verão inesperada. Tem que ter alguma coisa de frágil. Que é pra gente poder cuidar e mimar, e também pra entrar em contradição com o que eu já disse antes sobre o poder feminino. Também pudera: o que seria de uma mulher sem a contradição específica do seu sexo? Sem os gemidos abafados ou os gritos ensurdecedores das noites bem levadas. Dos orgasmos fingidos, e mais ainda dos orgasmos intensos tidos com a vontade de quem não se importa em mostrar que chegou ao paraíso. Tem que ter um pouco de Colombina pros Arlequins e Pierrots de plantão disputarem seu amor por entre estrofes. E um pouco de Cleópatra também. Que é pra aprender sobre solidão e sobre decisões mais acertadas que a ambição nos tira.
Ah, e uma mulher tem que ter um pouco só dela. Senão fica igual a todas as outras. Tem que ter aquela coisa que sirva de identificação ou apelido. Que venha dela e se mostre timidamente a quem conseguir devorá-la ou desvendá-la. Tem que ter seu quê de cor de pele ou cor de cabelo. E sem essas outras identificações muito específicas. Porque homem não sabe, e nem vai saber distinguir sua mulher pela cor do esmalte. A gente sabe a mulher que tem – ou que quer ter – pelo cheiro do pescoço, pelo chamego gostoso, pelo jeito com que ela anda de chinelo e moletom na rua. Por chamar de morena, ou minha loira, ou ruivinha, ou meu amor.
Uma mulher tem que ter tudo o que puder. E tudo o que quiser. Porque, cá entre nós, não importa muito o que a gente queira que ela tenha. Quem decide no final é ela mesma. E a gente só acaba tendo uma delas se elas mesmas quiserem nos ter.